SobreVIHver



Domingo, um dia de Sol de inverno, onde a temperatura relembra a primavera dos países nórdicos. Um dia de descanso convida o lazer, em tom de ócio presente. Resolvo fugir à azáfama das grandes superfícies onde o Natal se avizinha em comemorações obrigatórias.
Decido passear por Lisboa, sem rumo ou destino, com a sensação maravilhosa de não ter nada para fazer. As obrigações diárias são sempre tantas e sucessivas, instalando a rotina numa vivência aborrecida.
Subo ao Chiado e paro momentaneamente a contemplar a cidade e as pessoas que estridentemente percorrem as ruas em celebração da liberdade condicional.
Um homem, de 32 anos, dirige-se a mim e diz-me: - Boa Tarde, sou portador de HIV e em vez de roubar, prefiro pedir uma pequena ajuda para os meus gastos… Olhei-o serenamente e disse-lhe ser também portador da mesma patologia, o que lhe causou uma enorme admiração, sentindo-se sem motivo plausível, para me ter abordado.
Referiu ser portador há 12 anos, estando actualmente medicado com Kaletra e Truvada, mas que as coisas não estavam a correr bem, pois não conseguia obter uma carga viral indetectável.
Informei-o acerca da minha medicação, e questionei-o acerca do cumprimento da sua, ao que não obtive uma resposta concreta.
Enquanto procurava nos bolsos o dinheiro que lhe pudesse dar para o ajudar, ele olhou-me ternamente e perguntou se tinha sido um choque muito grande a notícia da infecção, ao que respondi afirmativamente. Disse-me então, que tinha sido maior o choque para a companheira do que para ele próprio.
Despedimo-nos e ele ficou por ali e eu desci a Rua do Carmo, em direcção ao Rossio.
Na memória trago este encontro, tão casual, que me inundou o pensamento por horas a fio. Se por um lado, fiz o que estava ao meu alcance naquele momento para ajudar este homem, o que terá ele feito por ele próprio ao longo do tempo na convicção de levantar a cabeça e seguir em frente, contornando a adversidade que infelizmente existe?
É um facto que a sociedade discrimina e estigmatiza todos aqueles que por qualquer motivo existam na diferença. Não há emprego, e nem todos têm a sorte e a saúde para encontrarem e manterem uma actividade profissional. Mas também é um facto que muitos dos que se sentem assim, se aproveitam disso mesmo para ganhar a vida de um determinado modo, na prática não menos fácil.
Urge encontrar na diferença um modo de vida que nos sustente enquanto existimos e que nos possa manter como seres humanos comuns, pois a diferença não pode ser caracterizada como uma vida em farrapos, até ao último dos seus dias.


26 comentários:

R.Almeida disse...

Olá Paulo
Embora não seja muito habitual, comentar os textos dos colegas de equipe, não posso deixar de comentar este.
Também já muitas vezes fui abordado na baixa lisboeta por pessoas que tendo como base o HIV pedem ajuda praticando a mendicidade.
Fico chocado, não pela mendicidade em si, mas pela falta de estruturas de apoio social que pudessem dar uma vida minimamente digna, a pessoas infectadas ou não que se encontram nas ruas das nossas cidades.
Lembraste-me o Alvaro de Campos, que deu todo o dinheiro que tinha na algibeira excepto o que guardava noutro bolso àquele pedinte por profissão que o abordou. Convido-te a ti e aos nossos leitores a ouvirem o poema que se encontra na barra lateral em "Cantando os Poetas"
Vai valer a pena.
Um abraço

joka disse...

Olá Paulo.
Antes de mais, obrigado pelo apoio que me deste.
Li algures e acho que é uma grande verdade, que nada neste mundo faz sentido se não tocamos o coração das pessoas. Se a gente cresce com os
golpes duros da vida, também pode crescer com os toques suaves na alma.

J.A

joka disse...

Obrigado Paulo.
Não imaginas o feliz que estou.
Agora sinto-me com mais coragem para seguir o caminho que me está destinado.
Com ele a meu lado tudo será mais fácil.
Obrigado por todo o vosso apoio.

J.A

Fatyly disse...

Gostei muito deste texto e a foto está lindissima.
Já fui abordada por vários(as) que usam o HIV como meio para a mendicidade.
Quem sou eu para questionar se são ou não são, mas conheço 4 personagens que deambulam por Lisboa, que já tantos fizeram por eles o que não te passa pela cabeça e voltam à rua. Questionei dois para saber a razão de terem abandonado o local X e a resposta foi imediata: a pedir ganho muito mais e com menos esforço e na rua não tenho que cumprir regras (para além do que roubam como é óbvio).
Isto que falo é verdadeiro, embora uma gota de água nos muitos sem-abrigo.
Também ao longo dos anos e falo em anos utilizaram as maiores artimanhas para pedirem: braços com gesso (que depois retiravam) etc. e agora é o HIV (3 deles). Verdade ou mentira? não sei, mas eu não dou dinheiro a ninguém e pergunto logo: tens fome? vem daí...e a maioria vira as costas.
A mendicidade não é uma vida fácil mas mais dificil é fazer a verdadeira triagem de quem anda na rua porque todas as portas foram fechadas.
Da mesma forma que não consigo ver a utilização de crianças para a mendicidade. Há 13 anos foi presa e internada (hoje encontra-se num lar) uma mulher que pagava aos pais para andar com os seus filhos a pedir (no comboio da linha de Sintra). Foi a forma de ajuda encontrada por um casal.

Não discrimino ninguém que seja diferente, mas a própria sociedade civil deverá encaminhar essas pessoas para quem os possa ajudar, ou seja...dar a cana e ensinar a pescar!

Um abraço enorme

Odele Souza disse...

Também não gosto de dar dinheiro aos pedintes. Muitos são "espertos"a usar a boa fé das pessoas. E ao fim do mês acabam por tirar um bom dinheiro. não quero e nem devo julgar ninguém, mas penso que sempre haverá uma atividade remunerada, por mais humilde e simples que seja que possa dará à pessoa a dignidade que o "pedir nas ruas"lhes tira.

Um forte abraço.

Elvira Carvalho disse...

O texto leva-nos a refletir. A mim o que me choca, não é exactamente o ser abordada por pedintes. Sempre os houve e sempre os haverá da mesma forma que sempre houve quem dê esmola, e quem não dê. O que me chocou foi o jovem saber que é portador de HIV, saber que tem que fazer medicação, que disso depende a sua vida, e por necessidade ou incúria, a não faça, ou a faça incorrectamente.
É uma forma de suicídio.
Um abraço e uma boa semana

Vera disse...

Olá Paulo :)
Gostei da imagem. Gostei do texto.Como tu, acredito cada vez mais que a nossa sociedade prefere tapar os olhos à diferença, a conviver com ela.E preocupo-me. Que Mundo estamos a deixar para os que vêm depois de nós? Que MUndo é este onde a diferença não é aceite e é discriminada? Não gosto. Eu gosto da diferença. Gosto de saber que ao meu lado se senta uma pessoa que em tudo difere de mim. Com ela posso aprender, posso não aprender e apenas tentar assinar. Mas gosto da diferença.
Um beijo para ti :-)

SILÊNCIO CULPADO disse...

Paulo
O teu texto é lindissímo e tocante. Fantástica também esta fotografia. Uma fotografia que sugere a vida sem esperança para quem caiu nas margens da vida e sobrevive da mendicidade. Com HIV ou sem HIV é uma pobreza que dói e incomoda. Haja ou não um trabalho alternativo, ele será sempre insuficiente e esta pobreza material e opcional é sempre uma constante.
Os mendigos incomodam-me, ferem-me os pensamentos, interrompem os meus passos.Atiram-me à cara a indignidade de certas diferenças. Não posso dar a todos mas quando dou não me preocupo com o destino do que dou.
Sem pretender comparar a minha humilde pessoa ao grande Dr.Sousa Martins vou deixar uma passagem dum livro sobre a sua vida escrito pelo Prof.Machado Pais:

"Em tudo Sousa Martins revelava bondade. Uma vez em que ia acompanhado por um colega, o Dr.J.J.da Silva Correa, na Rua de São Paulo,foi abordado por um pobre pedindo esmola. Sousa Martins puxou da bolsa e deu-lhe uma moeda de prata, perante o espanto do colega e amigo, dada a fisionomia e o hálito do pedinte, que denunciavam um alcoólico.Aí Sousa Martins, num encolher de ombros, virou-se para o amigo e disse:«Deixá-lo! Antes enganar-me dando uma esmola que vá alimentar o vício, do que negá-la a quem dela precise para matar a fome!»

Abraço

x_bear disse...

caro amigo...
descobri hoje este teu canto, devo dizer-te que foi uma novidade para mim e ao mesmo tempo algo que me fez reviver certas situaçoes (baseado em alguns posts que li aqui)... fico feliz por saber que existem pessoas neste mundo que têm a força para viver, têm a vontade de viver e de ajudar...eu tambem lido com a presença do HIV (pessoa mutio proxima)e tal como tu essa pessoa soube começar a viver de novo, com toda a força de outrora e claro está, com a força que eu proprio consigo transmitir...
Um bem haja para ti e um forte abraço***

Eme disse...

32 anos e na mendicidade.. 32 anos.. quando se espera que a compleição física nesta idade seja óptima não há razão para alguém ficar sem trabalho por causa de uma doença que pode ser controlada e cujo acompanhamento proporciona uma vida com qualidade razoável. Algo vai muito mal neste país.. Se á geração dos trinta se encontra neste estado nem quero pensar onde vai tudo parar..

Abraço

navegadora disse...

Excluidos...

Fazem pensar...e reparar que são invisíveis,
são como fantasmas que vagueiam sem lar,
que passam por nós de olhos no chão,
e que nos fazem desviar o olhar.

São feridas num corpo que é nosso,
Onde é que falhamos? Onde é que falharam?
Porque não nos acolhem?
Por onde escaparam?

Fogem dos nós que a vida lhes dá?
Hão-de ficar para sempre de fora?
Procuram na rua sem encontrar,
Esperam, esperam sem nada chegar.

Porque caminhos cruzaram?
Quantos laços desatados?
Quantos muros lhes ergueram?
Quantos direitos roubados?

Um beijo

ManDrag disse...

Salve! meu bom Paulo
Todos nós somos pedintes.
Todos nós somos carentes nesta sociedade voraz.
Todos nós somos excluídos quando não encaixamos nos cânones desta sociedade trituradora.
A mendicidade tornou-se uma profissão como qualquer outra, num mundo que padroniza e escraviza.
Pessoalmente dou esmola alietoriamente e sem me interessar o destino que ela terá. Não me cabe a mim fazer juízos. E sempre agradeço ao pedinte a oportunidade de o ajudar.
Para ti o meu abraço.
Salutas!

. intemporal . disse...

Olá Raul

Tens razão querido amigo quando te referes à falta de estruturas de apoio social tão necessárias no nosso país.

Os hospitais enchem-se diariamente de pessoas que precisam ainda mais de assistência social do que até do próprio médico... e recorrem sem alternativa.

Alvaro de Campos, a minha paixão, e convido todos os leitores a ouvirem a dissertação que se encontra na nossa barra lateral.

Deixo-te um abraço enorme.

. intemporal . disse...

Joka

"Se a gente cresce com os
golpes duros da vida, também pode crescer com os toques suaves na alma."

Esta expressão não me sai da cabeça!

:))

E podes crer que crescerás muito mais agora, de dentro para fora, como não me canso de referir e a maior prova de amor que obtiveste, unificará para sempre a felicidade de todos os teus dias.

(Aguardo o resultado do Western Blot e seja qual for, olhar em frente, é o que te digo!)

Deixo-TE (Vos) um abraço enorme.

. intemporal . disse...

Fatyly

Dar a cana e ensinar a pescar é de facto o caminho...

Mas a sociedade acena suavemente com a cana, sem sequer a dar, e mesmo que a desse, decerto seria difícil atingir o anzol e obter o proveito.

E assim vamos sobreVIHvendo...

Obrigado pelo comentário e pelo trabalho que nos dedicas nos teus textos sempre esclarecedores e escritos sem ser na base do cartão de visita.

Um beijinho.

. intemporal . disse...

Odele

Tem de facto toda a razão no que refere no seu comentário.

Este homem, penso que seria mesmo seropositivo, pela forma como me descreveu a medicação e o percurso clínico.

No entanto, a minha questão mantém-se:

Ao longo de 12 anos de infecção, o que terá ele feito por ele próprio?

Um beijinho para Si e outro, do tamanho do mundo, para Flávia.

. intemporal . disse...

Elvira

Foi essa a minha preocupação principal quando comecei a falar com ele sobre o HIV.

Senti que não cumpria a medicação correctamente e assim sendo, é tal qual como diz, um caminho para a morte.

Um beijinho e obrigado pela visita.

. intemporal . disse...

Vekiki

Obrigado pela visita a este canto onde se luta pela causa da SIDA.

Gostei da diferença contida no teu comentário, que traduz a pessoa que revelas ser, em humanidade plausível e racional.

Retribuo-te o beijo e espero voltar a ver-te aqui.

Porque vens por bem!

. intemporal . disse...

Lídia

Adorei o seu comentário. Tocou-me bastante.

"Antes enganar-me dando uma esmola que vá alimentar o vício, do que negá-la a quem dela precise para matar a fome!"

E o mundo pode ser assim, basta querer e um pouco de cada um é muito para quem recebe!

Um abraço apertado

. intemporal . disse...

x-bear

Sinto-te uma alma gémea!

E concluirás tudo o resto, obviamente!

Parabéns por seres quem és!

Parabéns pela tua existência.

Deixo-TE um abraço enorme e muito obrigado pelo comentário.

. intemporal . disse...

M. de M

Não queres pensar onde tudo isto vai parar...

No entanto, queres pensar no que se pode fazer para inverter o processo...

E pensas! Sim, porque tu pensas!

De dentro para fora!

Pudesse eu tirar cópias de ti, e distribui-las por todo o lado, em MXerox`s permanentes.

Abraço-[TE] enquanto te beijo.

:)

Why not?

. intemporal . disse...

Navegadora

Obrigado pela visita e pela inspiração!

E pelo trabalho em redigir tão bonitos versos.

Fizeste-me lembrar um bloguista, o Boris, do blogue "O CAMINHANTE" que desapareceu de repente e nunca mais apareceu para grande desgosto de todos os seus leitores.

E o blogue mantém-se aberto...

Esteja onde estiver, que esteja em Paz!

Deixo-te um beijinho enorme.

. intemporal . disse...

ManDrag

"Pessoalmente dou esmola alietoriamente e sem me interessar o destino que ela terá. Não me cabe a mim fazer juízos. E sempre agradeço ao pedinte a oportunidade de o ajudar."

Tu és assim... Eu sei...

Sinto-te como se te conhecesse há muitos anos...

E ainda bem!

Deixo-te um abraço do tamanho da tua bondade!

Maria Dias disse...

Oi Paulo...

Vc me fez lembrar dois casos q aconteceram comigo.Um deles é q aqui por perto ( há um shopping famoso no Rio)e alí num farol ficava uns pedintes com carteirinha e tudo, dizendo que eram portadores do HIV e eu geralmente ajudava.Mas houve um dia q não pude ajudar e o homem q pedia me olhou com um ódio sabe?Mas eu ajudava a ele nao por ele ser um portador de HIV mas pq costumo ajudar qualquer outra q peça inclusive criança...Pq sempre me coloco na mesma situação e tb imagino um filho meu pedindo(mesmo q eu esteja errando estimulando estas pessoas a pedirem mais eu tento me colocar naquela situação).Bem...Sempre q eu era abordada por estas pessoas em especial, notava tb uma forma bem mais agressiva de me abordar q as outras pessoas o q tb nao me fazia sentir bem.Talvez uns se revoltem não sei...E como vc ficava pensando se nao poderiam agir diferente...

Mudando para um outro quadro...

Tenho um amigo deficiênte físico(ele não tem uma das pernas)perdeu ainda jovem e hoje já tem uns sessenta anos...Acontece q este homem é tao forte q nem notamos q ele nao tem a perna...Para começar ele é um atleta,um ciclista e muito conhecido no Rio de Janeiro!Ganhador de inúmeras medalhas inclusive...É um verdadeiro campeão(inclusive já postei sobre ele no Avesso se chama "Alarico de Moura" e podem achar algo sobre ele na net)"Alá" como é chamado pelos amigos,sempre me impressionou, e o fato de nunca querer se mostrar como um coitado ou derrotado atraia muito amigos.Ok!Éramos muito amigos tempos atrás e saíamos em grupo para passear pelos pontos turísticos do Rio de Janeiro... Um dia estavamos esperando uma amiga na porta da casa dela e um homem veio nos abordar.Um homem jovem... Ele pedia dinheiro pq não tinha uma das pernas(como meu amigo!)e dizia q por conta disto nao conseguia emprego.E quando meu amigo se levantou o homem tomou um susto!Eu nunca mais me esqueci deste episódio... Acho q tudo depende da força q temos dentro... Da busca pelo recomeço... Da busca pela auto estima. Sem ela ficaremos nós ficaremos no chão e ninguém poderá nos ajudar a não ser nós mesmos...
Entendo q a vida já é difícil para as pessoas sem nenhum destes problemas, mas quem acredita quem nao luta e se entrega...Quem nao tenta virar o jogo, já perdeu nesta corrida.

Gostei muito deste post!

Beijinho

Maria Das

. intemporal . disse...

Maria Dias

"tudo depende da força q temos dentro... Da busca pelo recomeço... Da busca pela auto estima. Sem ela ficaremos nós ficaremos no chão e ninguém poderá nos ajudar a não ser nós mesmos..."

Dizes tudo e agradeço-te por isso!

Obrigado por mais esta visita!

Deixo-te um beijo enorme.

Hermínia Nadais disse...

Faz tempo que não tenho podido andar por aqui. Tive saudades, mas o tempo prega-nos partidas.
Tenho que voltar com mais tempo para ler com uma atenção mais profunda todos os textos que têm mensagens maravilhosas.
Para todos, as maiuores venturas no 2009 que se aproxima a passos largos. Beijo