Nem só na Sida está a dor

Atendendo a solicitação de Ru2x autor deste blog, relato aqui o meu dia a dia para cuidar – em casa - de minha filha Flavia, hoje com 20 anos e que há 10 anos está em coma vigil, devido a um acidente sofrido com um ralo de piscina. A história de Flavia poderá ser conhecida no blog FLAVIA, VIVENDO EM COMA.

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Para melhor entender porque mesmo em coma, cuido de minha filha em casa, e para não deixar este post por demais extenso, sugiro a leitura do post do arquivo do blog de Flavia, com o título NO ACONCHEGO DO LAR, de 20 de Maio de 2007.

Quando aconteceu o acidente com Flavia eu trabalhava na empresa HP Brasil, na qual já estava há cinco anos. O Plano de saúde da empresa me permitia ter uma estrutura de cuidados com Flavia, Home Care, por exemplo. Por isso, após oito meses de internação hospitalar e ainda sem ter saído do estado de coma, eu, de comum acordo com Dr.Fernando Arita, neurologista de Flavia, optei por cuidar dela em casa por achar que o aconchego do lar lhe faria bem, além de facilitar meus cuidados e atenção com meu filho Fernando, na época com 14 anos. Trabalhar, dar atenção a Fernando e estar presente no Hospital com Flavia não era tarefa fácil.

Após cinco anos do acidente, e certamente pela queda de minha performance no trabalho, fui demitida do emprego. Já há algum tempo sem o Home Care, montei uma estrutura própria com todos os profissionais mencionados como necessários pela perícia neurológica feita em Flavia. Essa estrutura de cuidados exigia entre outros profissionais, fisioterapia diária e duas auxiliares de enfermagem que trabalhavam em dias alternados, com carga horária de 12 horas cada uma. Depois que a empresa JACUZZI do Brasil, deixou de pagar o valor mensal de R$ 2.500,00 ( dois mil e quinhentos reais) que pagava à Flavia a titulo de tutela antecipada (ler no blog de Flavia sobre os trâmites do processo na justiça paulista) tive que mexer nessa estrutura. Hoje aposentada, para cuidar de Flavia, eu conto apenas com a fisioterapia diária e uma auxiliar de enfermagem que trabalha em dias alternados.

Esta é a rotina de cuidados com Flavia, que vou descrever de forma simplificada.

Dia 01: Com ajuda da auxiliar de enfermagem.
06:00h – Preparo a primeira refeição de Flavia. Uma das seqüelas do acidente é uma severa disfagia – a incapacidade de engolir. Por isso toda medicação e alimentação têm que ser líquidas e dadas pela gastrostomia., uma cirurgia que através de uma sonda leva o alimento diretamente ao estômago.

08:00 – Chega Masé a auxiliar de enfermagem que faz a higiene em Flavia e a veste para a fisioterapia. A higiene corporal é feita duas vezes ao dia e atenção especial é dada à higiene oral. Flavia nunca teve cárie e se tiver, será complicado tratar. Ela teria que ser internada e receber anestesia geral, já que ela não responderia à ordem do dentista de ficar com a boca aberta. Depois da higiene e da fisioterapia, eu e Masé colocamos Flavia em uma cadeira de rodas especialmente feita para as condições dela. Flavia fica um tempo na sala ouvindo música ou textos que Masé lê para ela. Enquanto isto, cuido dos afazeres da casa.

Por volta do meio dia descemos com Flavia para o jardim do prédio onde ela toma ar fresco, sol e recebe estímulos visuais e auditivos. Por volta das 13:30h subimos para o apto e recolocamos Flavia na cama. Deixo-a com Masé e saio para resolver os compromissos externos.

Durante o dia Flavia recebe alimentação e medicação em horários que devem ser rigorosamente obedecidos. É preciso estar atentos a qualquer sinal de desconforto para, se necessário, dar uma medicação extra ou mudá-la de posição para evitar a formação de escaras, que Flavia nunca teve. Sua pele é íntegra. Por causa das secreções que se formam em seus pulmões, ela precisa ser aspirada pelo nariz e por boca, várias vezes ao dia.

Muito importante é dar a Flavia ou a qualquer paciente em estado de coma, além dos estímulos visuais, também estímulos auditivos. Mantenho no quarto de Flavia, um aparelho de som, e ali coloco músicas cuidadosamente selecionadas para ela. O repertório é vasto. Roberto Carlos, Andrea Bocelli, Yanni, Enya, Mozart..... Além disso, com o notebook no quarto dela, coloco algumas músicas que os amigos lhe enviam por computador. E sempre digo a ela quem enviou. Faço o mesmo com os textos que os amigos enviam e que leio para ela. É preciso conversar com pessoas em coma. É provável que nossa voz lhes cheguem como um carinho.

20:00 – Masé termina seu plantão.

À noite, fico sozinha com Flavia que dorme no quarto dela, ao lado do meu. Ambos os quartos ficam sempre com as portas abertas para que eu consiga ouvir qualquer ruído que possa significar uma necessidade de Flavia. Quase sempre ela dorme bem, mas às vezes, por causa do excesso de remédios que toma, acontece uma indisposição e ela vomita. É um momento difícil, mas vou lhes poupar dos detalhes.

Dia 02 – Sem a ajuda da auxiliar de enfermagem.
A rotina de cuidados é igual ao dia anterior, mas sem a auxiliar, Flavia permanece o dia inteiro na cama já que sem ajuda, é impossível eu sentá-la na cadeira de rodas. Sem a auxiliar de enfermagem , também é impossível eu sair de casa

Se vivo apenas em função de Flavia? Não.

Para sair de casa e me distrair um pouco, ou Masé faz um extra, ou contrato outra auxiliar de enfermagem que mantenho como reserva para essas ocasiões. Gosto de ir ao cinema, teatro, visitar museus, exposições. Também em dias alternados, faço ginástica na academia do prédio. E como atividade solitária, gosto de ler e escrever.
A dor por ver diariamente Flavia inconsciente e dependente de todos pra tudo, obviamente existe e é dilacerante. O grande desafio é viver uma situação de dor sem nos tornarmos nós próprios uma dor para o outro, no caso aqui, para meu filho.

A dor há que ser trabalhada, sob pena de sucumbirmos a ela. Sem a pretensão de dar conselhos, mas sim como sugestão, eu lhe diria: Se você estiver passando por uma situação de dor, de sofrimento intenso, qualquer que seja a circunstância – qualquer – depois de um tempo de convivência íntima, de ter se entregue à sua dor de forma total e completa, reaja, saia do luto. Lute!

Um beijo.
Nota de RU2X: Obrigado Odele pelo seu testemunho. Tomei a liberdade de colocar em bald e a vermelho a parte final da sua mensagem por a achar importante demais, para muitos dos leitores do blogue que estão infectados pelo HIV. Beijo para você também.

18 comentários:

redonda disse...

Não sei se esta descrição também está no blog da Odele. Se está,foi aqui que a li pela primeira vez e achei muito bonito o final de mensagem.

Odele Souza disse...

Ru2x,

Eu é que agradeço pela oportunidade de escrever para você e seus leitores, sobre minha experiência em cuidar em casa, de minha filha em coma.

Tem uma chamada para este seu post lá no blog de Flavia. Espero que nossos leitores passem por aqui e tomem conhecimento das informações que você de forma competente, vem passando sobre a SIDA.

Um abraço.

Betty Vernieri disse...

Caro amigo RU2X

Antes da blogagem coletiva, eu já havia escrito a respeito da Flavia, pois li sobre o caso num outro blog e fui lá conferir a história. Deixei um comentário, a Odele respondeu, e assim nos conhecemos.

A Odele é uma pessoa extraordinária, uma lutadora incansável, dessas que fazem a diferença nesse mundo louco, e é impossível ficar indiferente ao que aquela família tem vivido nos últimos dez anos.

Um beijinho carinhoso.

Isabel Filipe disse...

Olá Ru2x,

Bom dia.

Sou uma das 1ªs pessoas que em Portugal tomou conhecimento do caso de Flávia ... conheço bem a situação ... e apesar de tudo uma lágrima teimosa teimou em rolar pela minha face ...

Considero Odele uma MULHER DE FORÇA, uma Mãe Coragem; com ela tenho aprendido muito nos últimos meses ...

beijinhos para ti

Anónimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

Ru2x, parabéns pelos seu blog, e, principalmente neste momento uma parceria de amor entre Flavia &Sidadania! Que você continue na luta! Eliana -Mogi Guaçu-SP -Brasil.

peciscas disse...

A Odele é uma grande mulher.
Vim aqui por seu intermédio tomar conhecimento de mais um testemunho de coragem e de partilha.
Um abraço|

Fatyly disse...

Vim aqui através da Odele. O seu dia-a-dia narrado na primeira pessoa é realmente ...não tenho palavras.

Não conhecia o teu blog, e sobretudo de alguém infectado e que corajosamente se põe à disponibilidade de "mentes tão atrasadas" que proliferam por este belo país à beira mar tão mal tratado.
É hábito meu ler desde o início, e não tenho dúvidas que voi accionar-te...mas agorinha mesmo fui interrompida pelo meu "SOS avózinha" mas neste caso pelo genro que me cravou o almoço:)
Peço desculpas, mas logo voltarei e deixo aqui aquele abraço, aquele beijo para ti e para os teus e dou-vos a mão, porque os afectos, a solidariedade neste mundo de mil cabos é a mesma que pratico no meu dia-a-dia.

Fatyly disse...

Ora aqui estou de novo, conforme prometido. Não sei ser sucinta:) Estive quase duas horas (com intervalinhos por causa das vistas eh eh) a ler todos os teus posts...com passagens que realço:
-Como te foi dada a notícia - brutal e sem um pingo de humanidade.(já mudou alguma coisinha mas ainda há tanto que fazer)
-Água Oxigenada muito eficaz (mas tenta descobrir o valor da velhinha tintura de iodo;)
- basta ter fé e acreditar, depois falamos com Deus em qualquer lugar(e eu refilo tanto com Ele e sobretudo diante de uma Igreja Católica retrogada e mais não digo)
- a lipodistrofia (pelo que tenho lido já há farmacos que atenuam esse efeito)
- "A casa do Prenda em Luanda"(já conhecia este exemplo não fosse Luanda a minha terra:) e por cá lamentavelmente é o que se sabe.)

Sempre fui uma pessoa interessada pelo que me rodeia, pelos mais diversos doentes das mil e uma doenças e tão esquecidos. Sendo eu dadora de sangue há 30 anos, depois do meu contributo deambulava por enfermarias e vi tanta coisa com as quais aprendi a mudar as lentes de visão da minha alma. Antes disso foi a solidariedade entre os naturais e quem vivia em Angola numa guerra brutal com os últimos 3 anos...não quero recordar.

O teu blog não é só destinado a quem é infectado pelo sida e hepatites. O teu blog é também para quem não padecendo desses males tenha a oportunidade de aprender a não descriminar e adquira ferramentas para se prevenir e também para poder ajudar os outros.
O teu blog é uma enciclopédia de utilidade pública ao alcance de um clik.

Julgo que em Portugal (atrasado como sempre) só em 78/79/80 é que foi disparado o "alerta-SIDA", com a morte de dois africanos e António Variações nos hospitais portugueses. A informação era escassa, nem todos e nem eu domino o inglês e a informação era zero. A internet ainda hoje não é acessível a todos e as campanhas publicitárias raramente passam nas televisões - o que eu viamente condeno.
Temos agora a onda patética do tabagismo. Sou fumadora e nunca fumei em locais fechados, restaurantes e cafés. Li num dos teus posts - 2006, o tal do "baston" que tinhas ido para um local fumar o teu cigarro.
A maioria do povo português ainda pensa que a "pedrada" só acontece aos outros, mas qualquer doença, azares (como o de Flávia), os acidentes e a invalidez de tantos jovens, etc, etc...também nos podem bater à porta.
Mesmo assim a nível hospitalar o atendimento, a ajuda psicológica, os meios já são muito melhores que há 20 anos atrás mas ainda estamos anos luz de muitos países e até dos nossos vizinhos espanhóis.

Gosto de ler blogs onde aprendo alguma coisa, onde frontalmente e sem lamechices "gritam os seus crocodilos" alertando sem alarmismos e dou-te os meus parabéns num abraço do tamanho da galáxia.

Anónimo disse...

Deixo-te um nome de um amigo que está ligado a SIDA/VIDA. Alfredo Frade. É um psiquiatra. Tem desenvolvido e tem-se posto ao lado daqueles que (ainda hoje, apesar de toda a informação) tão descriminados.
Parabéns e se não te importares, vou linkar-te, pode ser?
Como vim cá ter?
Por indicação da Fatyly que é, assim, uma Pessoa Linda, por fora e por dentro.

Deixo-te um beijo, e, um abraço apertado, Ru.

Com toda a admiração por este espaço,

Cris

Nuno de Sousa disse...

Boas RU2X,

Obrigado por suas palavras mas que sou eu comparado com o que aqui transmite no seu blog, no que sofre, mas que está aqui lutando por si e dando voz a tantas pessoas nesta situação, isto sim é um ser de uma coragem e de grande sensibilidade e coragem eu sou apenas mais um ser humano nesta terra que admira a sua forma de vida, a sua força como a da Odele que aqui registou uma luta de como cuidar uma menina linda e que teve um azar na vida, grande coragem desta nossa amiga, uma pessoa que admiro pelo que vai colocando no seu Blog e de que se entrega cuidado da sua Flávia mas com esperança e fé pode ser que um dia ainda volte ao nosso convívio.
Acredito muito nas pessoas como o amigo RU2X, e sempre que precisar dos meus préstimos esteja à sua vontade, e são estes pequenos gestos, nos blog's que se vão dando a conhecer, nos dar a ler que nos vamos aproximando e que nos fazem viver e ter admiração por pessoas como já tenho por si.
Um forte abraço com toda a admiração pela sua luta e nunca se deixe abater, lute sempre com as maiores das forças e sem perder a fé, pois acredito que como disse Flávia enquanto estivermos vivos existe sempre uma esperança, acredito nisso, não se pode é nunca baixar os braços mas sei que desse lado está um lutador.
Grande abraço deste amigo,
Nuno

Jalul disse...

RU2x, bela idéia a sua de encontrar na Odele uma fonte de informações sobre lutas e dores.

Ultimamente venho me perguntando,no limiar dos meus 60 anos de existência, quantas Odeles conheci na estrada.
Posso responder de imediato: poucas, muito poucas. Mas sei que há muitas que não conheci e outras tantas que não conhecerei. O mundo é grande, afinal.

De onde vem essa força? Também respondo de imediato: a força de Odele vem do mesmo nascedouro da que já inspira você. Qualquer que seja sua crença, acredite que terá forças para a luta. E lute!

Aprendi uma coisa que serviu-me de amparo: nunca devemos tornar a doença a mais importante das causas. É o doente quem deve ser amado.

Parabéns pelo blog elucidativo e repleto de sensibilidade.

Leila Jalul

amigona avó e a neta princesa disse...

Passei por aqui através da Odele que conheço há já algum tempo...voltarei..

Anónimo disse...

Que belo exemplo de fé, força, esperança, dedicação, enfim, de AMOR!

aDesenhar disse...

A solidariedade na Blosfera não tem limites.

O teu texto retrata bem as experiências vividas no dia a dia, de quem por força das circunstâncias, teve de alterar radicalmente a sua vida.
É triste e vergonhoso, quando os governos dos países, com responsabilidades e obrigações, adquiridas em qualquer eleição, não sejam depois capazes de cumprir com o prometido aos seus povos, no que diz respeito a um bem essencial que é a Saúde, e se preocupem mais com o seu bem estar,
ignorando hipocritamente o mundo real que os rodeia.

Com os vossos tesmunhos,
Odele e Ru2x
aprendemos assim a crescer como cidadãos, derrubando barreiras de preconceitos, e sensibilidades que por vezes estão associadas a estes e outros casos.

Obrigado Odele/Flavia e Ru2x
pela lição de vida
porque com o vosso exemplo
cresço como homem e ser humano.

abraço

Anónimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

Ru2x, minhas reverências.
A vida de Odele e seus filhos é um exemplo para todos nós que julgamos insuperáveis quaisquer dificuldades corriqueiras.
Nada é mais mais humano que a dor diante do sofrimento. Porém, só as almas iluminadas conseguem transformá-la em lição de vida.
Obrigada.

beijos a ambos.

Unknown disse...

ha certeza jamais ele te abandonara lute ore creia que jesus cura e liberta não desista pela justiça e nao esqueça voces duas tem um grande deus beijos