Direito à morte


João vive numa pequena aldeia onde todos se conhecem. “Uma jóia de homem” – diz uma vizinha que o conhece há muitos anos e que envelheceu com ele. Noventa anos. Trabalhou, casou, criou os filhos e ama os netos. A esposa dona Antónia, não sai de casa. Sofre de Alzheimer e a doença fez com que perdesse todos os amigos. É agressiva a maior parte das vezes mesmo para com os netos de quem tanto gostava.
João arrasta-se pela calçada em passos apressados mas doloridos. Não pode demorar muito e deixar Antónia sozinha. “ Ohh homem… tens de a por num lar. Isso não é vida e estás a matar-te aos poucos” João sorri para amiga que lhe falou e prossegue o seu caminho apressadamente. Ninguém sabe a dificuldade de encontrar um lar para acolher uma pessoa com esta doença.
Outrora um homem que amava a vida e a família é hoje um trapo sem vontade de viver. A sociedade, alheia à dor dos outros impõe regras morais, direitos e deveres. Fazem leis e códigos de conduta. Condenam e proíbem. Julgam sem saber julgar.

A pacata aldeia, acorda ao som de sirenes. Ambulâncias do INEM , vários carros de policia, frente à casa de João e Antónia. Fitas vermelhas e brancas estendidas à volta da casa interditam o espaço.
João matou Antónia, asfixiando-a e enforcou-se de seguida.
Chegam carros com jornalistas, fotógrafos e televisão. Entrevistam-se os vizinhos. Querem saber tudo de João. Pensam em títulos que vendam a Noticia: “Idoso mata companheira” … “ Idosa doente barbaramente assassinada pelo marido” … pouco interessa a verdade. Interessa chamar a atenção.

Descrita a cena, reflectir sobre a mesma é algo que levanta um sem número de perguntas. Pensar sobre eutanásia e instituições de cuidados paliativos que acolham doentes crónicos em fase terminal impõe-se. O direito à morte quando a vida deixou de ser aquilo que a define.
João morreu. Poderia viver mais uns anos rodeado do amor dos filhos e dos netos que devido à doença da mulher e à agressividade se afastaram. Poderia ter tido um fim de vida digno relembrando com doçura todos os momentos felizes que viveu.
Antónia poderia ter partido de forma serena, rodeada por aqueles que a amavam.
O crime não é de João mas da sociedade que o condenou. A injustiça da vida quando uma lei cega, proíbe e condena o direito à morte.

Raul Almeida

8 comentários:

Elvira Carvalho disse...

O seu texto tocou-me amigo. No dia 5 deste mês faleceu a minha mãe. Paralisada do lado esquerdo e sem sair de casa há 27 anos devido a um AVC. Há dois anos faleceu meu pai num sofrimento atroz por má circulação. Amputaram-lhe uma perna e morreu na véspera da amputação da outra. Sempre esteve lúcido e sempre pediu que lhe dessem a morte não queria viver naquele sofrimento. No dia em que morreu arrancou o cateter anestésico que tinha na coluna`o soro e tudo o resto e pediu e pediu às enfermeiras e médico que o deixassem morrer.
Depois da morte dele, a minha mãe piorou muito. O pouco raciocínio que ainda tinha foi-se. Sem conseguir forças para continuar a cuidar dela, tratei de toda a papelada para que fosse internada numa unidade de cuidados continuados. Disseram-me que tinha que aguardar vaga. No inicio de 2010 completamente exausta internei-a num lar. O caricato da situação é que ela faleceu no dia 5 de Fevereiro no hospital do Barreiro, e no dia 7 recebi um telefonema da Assistente Social a dizer que ela ia para a tal unidade de Cuidados Continuados no final do mês.
Agora veja como é que uma pessoa acamada, semi-paralisada, com demência, insuficiência cardíaca e renal, espera dois anos para entrar numa UCC? Que País é este?
Um abraço

mariam [Maria Martins] disse...

Raul,

Um texto 'forte', sensível... de fazer pensar...

Fechei a caixa de comentários do http://mariasentidos.blogspot.com/ (um dia destes reabro), mas continuo a visitar o 'blogobairro' e embora ande parca no comentar, não me esqueci de Si nem dos outros(as)amigos(as).

um abraço e o meu sorriso de sempre :)
mariam

Unknown disse...

Amigo, creio que esta história teria final diferente se José tivesse dinheiro e pudesse contratar enfermeiras para cuidarem de sua esposa; e seus filhos e netos não se afastariam tb.
Lendo o comentário da Elvira vejo que a saúde no Brasil e em Portugal são identicas. É muito tristte ver os governantes enriquuecerem e o povo sofrer mais e mais.
Beijos.

MARIA disse...

Não tenho podido passar aqui.
Que bom sabê-lo bem, vê-lo a escrever. Quanta saudade deste espaço de partilha e sabedoria!...
Compreendi o seu texto como sempre bem fundamentado, como tudo o que escreve.
A luta contudo, meu querido amigo, não deve ser pelo direito a morrer, mas a viver com dignidade e qualidade. Outras soluções que não a morte existiriam para esse casal se as circunstâncias da vida na Terra fossem diferentes.
Recentemente, meu amigo, vi alguém muito especial para mim tentar por termo à sua vida e a luta para trazer de volta à vida esse alguém, deu-me uma perspectiva muito diferente desta matéria. Nós não queremos o sofrimento, contudo não é a morte que queremos, é a vida sem esse sofrimento que queremos. Por vezes parece-nos que só o fim da vida representa também o fim do sofrimento, mas nunca é o que queremos. Nunca...

Raulitoo, um doce beijinho amigo da
Maria

Odele Souza disse...

Passando pra te deixar um abraço.

Odele

Julio disse...

Existem milhares destes casos por Portugal todo - milhares!
Em todo o mundo, milhões.
E não há saída melhor - não haverá melhor saída nem nos próximos 100 anos, talvez 1000.
Sou pela EUTANÁSIA sem hesitar.
Nao há direito que não tenhamos direito a morrer!
Júlio.

vieira calado disse...

Olá, caríssima, como está?
Hoje venho expressamente desejar-lhe um Bom Natal!
Beijinhos.

** Há um novo poema de Natal no meu blog

Julio disse...
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