A Sexualidade dos Velhos

O Raul pediu-me um texto sobre este tema, depois de me ouvir falar num congresso sobre sexualidade no processo de envelhecimento. Não quero aqui deixar um discurso científico ou académico, mas antes partilhar algumas reflexões sobre um tema tão difícil.
Mas difícil porquê..?
Porque é desconhecido e silencioso. A sexualidade dos mais velhos é quase um tabu, como se não existisse…. Mas existe, e ainda bem!
Quando os mais novos imaginam os seus avós a terem sexo, soltam risos e caretas, como se fosse uma coisa patética, no mínimo, difícil de imaginar. Pois é, fomos criados numa sociedade em que o sexo é um privilégio dos mais novos. Dos novos e dos bonitos, com corpos magros, tonificados e atractivos. E não nos esqueçamos que na nossa sociedade ainda persistem os estereótipos negativos que associam a idade avançada à fragilidade, à incompetência e à desocupação.
Por outro lado, essa mesma sociedade herdou da cultura judaico-cristã o modelo reprodutivo do sexo, ou seja, a sexualidade ao serviço da reprodução. Assim, acabada a função reprodutora, o sexo já não faz sentido.
Os estigmas do envelhecimento derivam desse modelo reprodutivo do sexo. De acordo com este paradigma, todos os comportamentos sexuais que se afastem do coito com fins reprodutivos, são considerados anormais e inaceitáveis. O modelo reprodutivo desconsidera a função erótica e desvaloriza o prazer. Assim, a sexualidade dos mais velhos ainda é marginalizada.

E pior ainda, é aquela ideia de que o sexo significa apenas o coito. Fomos socializados no sentido de “aprender” que as relações sexuais são a prática do coito. O modelo genital da sexualidade, que nos foi sendo incutido, reduz a sexualidade à relação centrada nos genitais. Foi assim que o Bill Clinton pôde afirmar que não tinha tido sexo com a secretária, embora tivessem manchado o vestido. E se temos esta ideia redutora do sexo, é fácil entender que os mais velhos não tenham sexualidade, pois, nesta etapa da vida a prática do coito pode nalguns casos estar comprometida por razões de saúde. Mas uma relação sexual é apenas o coito vaginal...? Esperemos que não. Zona erógena: 2 metros quadrados de pele!

Existe sim um conjunto de factores que limitam o bem-estar e podem constituir as razões para a interrupção ou ausência de vida sexual activa. Eu diria que os principais factores perturbadores da vivência da sexualidade são os factores médicos e os factores sócio-culturais.
Por um lado o aumento de problemas de saúde: a doença e sobretudo a medicação e os tratamentos, bem como a auto-estima diminuída em consequência do sentimento de debilidade do processo de doença. Mas também as dificuldades económicas e/ou sociais consequentes da aposentação. Pode haver e há, uma certa desconsideração social; as dificuldades económicas e a desvinculação social imprimem uma sensação de marginalização.
Também a real possibilidade de perda significativa no sistema de relações sociais, ou mesmo a ausência de vínculos afectivos fortes, pela morte do parceiro (a problemática da solidão).
Por outro lado, os estereótipos socio-culturais que ameaçam a sexualidade neste período da vida. Por exemplo, a ideia que os idosos não têm interesse sexual, ou que os que se interessam pelo sexo são perversos, ou ainda que o sexo faz mal à saúde. São falsas crenças que condicionam negativamente as possibilidades dos mais velhos viverem livremente a sua sexualidade.

O envelhecimento é difícil para todos. Homens e mulheres enfrentam um duro processo de mudanças corporais. O envelhecimento da figura corporal implica a aceitação de uma figura diferente, uma pele mais rugosa e flácida, menor tonicidade muscular, perda da flexibilidade e capacidade física. A capacidade de sedução e atracção fica ameaçada. E tudo isto acontece numa sociedade brutalmente exigente com a imagem corporal.
É assim para ambos os sexos, embora a mulher seja mais penalizada. Como afirmou Susan Sontag em 1975: “Um homem, inclusive um homem feio, mantém-se sexualmente elegível até ter uma idade avançada (...) É um parceiro aceitável para uma mulher jovem e atraente (...) As mulheres, tornam-se inelegíveis numa idade muito mais jovem (...) Assim, para a maior parte das mulheres, o envelhecimento constitui um humilhante processo de desqualificação sexual”. Penso que 33 anos depois, esta declaração continua actual, embora vivamos tempos de mudança.Há muitas mulheres de maior idade que experimentam satisfação sexual pela primeira vez nas suas vidas com paixão e entrega, por causa de um novo parceiro, por uma aumento na auto-confiança ou pelo desprendimento de antigas inibições e hábitos.
É preciso afirmar que muitos idosos querem e são capazes de desfrutar de uma vida sexual activa e satisfatória.
A sexualidade no envelhecimento, depende em larga medida de como as pessoas viveram a sua sexualidade ao longo da vida. Um dos melhores predictores do sexo no envelhecimento, é a frequência de uma vida sexual gratificante no passado.

Agora mais do que nunca, o bem-estar do idoso constitui uma preocupação social urgente. Em particular o tema da sexualidade neste período da vida, para além de uma abordagem médica sobre limitações e prejuízos (que é real e importante), merece também uma abordagem mais positiva. Assim, costumo dizer que depois das vicissitudes da conjugalidade, esta sexualidade é uma sexualidade livre. Livre das preocupações e esforço da actividade profissional, livre do stress do trabalho, livre do cuidar dos filhos, livre da reprodução e livre do coito privilegiado.
Liberdades que permitem a diversidade de vivências eróticas. A menos valia relativamente às performances sexuais, obriga à reinvenção do erotismo, à descoberta de novas formas de prazer. É a intimidade erótica aliada à maturidade e às vantagens da experiência.

Ana Alexandra Carvalheira
Psicóloga clínica e sexologista
ana.carvalheira@ispa.pt

21 comentários:

Isabel Filipe disse...

Gostei muito do texto e de tudo o que ele contém ...

realmente o tema "sexo dos velhos" é tabu ... todo o mundo gosta de fingir que não existe ...


bjs

SILÊNCIO CULPADO disse...

Um texto excelente que traz muito esclarecimento e entra numa matéria ainda tabú.
É importante que estes assuntos sejam falados, sem falsos pudores, numa perspectiva de realização humana e de dignidade de vida vivida em plenitude.

Porém, não posso deixar de referir que esta realidade, nua e crua, que discrimina o idoso e é particulatmente penalizante para a mulher, tem uma leitura e uma vivência nas classes mais desfavorecidas e outra completamente diferente nos estratos privilegiados.

Nestes últimos, os bons estilistas, os bons ginásios e os bons institutos de beleza fazem da idade madura um estádio com beleza própria em que a sensualidade não parece descabida.

Teu mais que tudo disse...

Muito interessante este artigo que merece uma ampla divulgação pela informação útil que contém.
Quando pensamos no sexo entre idosos pensamos logo naqueles idosos curvados e com bengala. Mas há idosos em excelente forma física.
Em qualquer dos casos há que viver as diferentes fases da vida de forma descomplexada e sem retirar o preenchimento emocional que é indispensável à realização do ser humano como pessoa.
Depois, e como muito bem diz Ana Carvalheira, o sexo não é apenas o coito na sua forma mais tradicional.
Muito bom este artigo e parabéns ao Sidadania.

René disse...

Um alerta importante, sem dúvida.

A sexualiadde na terceira idade não pode continuar a ser esquecida, mencionada como uma vergonha ou até penalizada.

Um artigo esclarecedor e desinibidor.

Um abraço

ARTUR MATEUS disse...

Um grande artigo, sem dúvida, escrito por quem conhece bem a matéria.
A sexualidade está patente na vida do indivíduo desde que nasce até que morre.
A sexualidade não se confina ao acto sexual mas a toda uma realização emocional que consiste na companhia, no afecto, no tocar o outro, no partilhar a paixão.
Nenhum ser humano pode viver sem isso e ser feliz. Portanto negar, ou fazer de conta que não existe ou que existe associado a um sentimento de culpa, é criminoso porque é matar uma parte da pessoa aquela parte que lhe dá razão de vida e consistência ao caminho.

carlos filipe disse...

Ando numa roda viva
a visitar os amigos
que sofrem grandes castigos
tendo a sua sorte cativa.

Gosto do Sidadania
em que Raul, homem são,
de alma e de coração
luta com toda a valentia.

Procura que os cidadãos
muito mal aconselhados
sejam da sida informados
e tenham soluções nas mãos.

E dentro da informação
viver a sexualidade
dos velhinhos e velhinhas
é uma luta de verdade.

Porque na nossa sociedade
só a juventude tem sexo
lá viram coisa sem nexo
e de maior brutalidade?

Carol disse...

Adorei este artigo sobre a sexualidade na chamada terceira idade.
Este é, de facto, um tema ainda tabu mas, felizmente, começa a deixar de o ser.
Aguardo mais posts sobre este e outros temas bem pertinentes.

Robin Hood disse...

Raul
Vejo que falta aqui a tua marca de presença e, por isso, presumo, que possas não estar na melhor forma. Estamos contigo a torcer pelo melhor.
Este artigo de Ana Carvalheira é uma artigo de grande improtância no esclarecimento e combate a tabus.
Um abraço

Eternamente disse...

Raul
O Sidadania está cada vez melhor com informação de grande gabarito. A sexualidade dos idosos é um assunto que ainda não se discute abertamente como se os idosos já não tivessem direito ao amor e à paixão.
Grande qualidade e grande esclarecimento é prestado neste post.
Um beijão

Mary disse...

Um bom texto, sim senhor, quem fala assim sabe do que fala.
Se os velhinhos pudessem fazer sexo a vontade, ou realizarem-se sexualmente doutra forma, possivelmente seriam menos cruéis para os filhos algumas vezes.
Sim, porque os velhinhos às vezes cobram bem e os filhos passam muito com eles.
Concordo que a falta de romance os torne mais implicativos. Sentem-se assexuados.

whitExpressions disse...

Post muito bom, parabéns!
Zona erógena: 2 metros quadrados de pele!Faz todo o sentido.
Raul, espero que estejas bem.
Beijinhos

C.Coelho disse...

Raul, espero que estejas bem e que este grande projecto que aqui tens de anime.
Este post é profundamente elucidativo e merece toda a nossa atenção. É bom que as mentes se abram para as realidades para que as diferentes épocas da vida sejam vividas em plenitude.

Beijoca

Manuel Damas disse...

Passei para deixar um abraço

Michael disse...

A sexualidade dos mais velhos não é algo que se deva omitir como se dum assunto tabu se tratasse.
Todas as pessoas precisam realizar-se emocionalmente para terem uma vida equilibrada.
Zona erógena= 2 m2 de pele. É isso mesmo.

errando por aí disse...

Um artigo de indiscutível substância e que alerta para uma situação que a sociedade procura não saber.
Terminado o ciclo fértil, saindo fora do mundo do trabalho, o velhinho carrega a sua cruz de desistência dos prazeres sensuais sejam em que forma eles se traduzam.
Nada os torna mais inúteis que essa forma de olhar que os remete para a situação de assexuados.

amigona avó e a neta princesa disse...

Este é um problema real muito bem analisado aqui!
Não tenhamos dúvidas que MUITOS de nós assim pensamos e, às vezes, se fosse algum parente nosso aí saltavamos nós de unhas em riste!!!!!!! Aceitar sexo nos idosos não é para toda a gente...importa reflectir e passar a mensagem...
Raul, espero que esteja tudo bem contigo...beijos...

Eternamente disse...

Raul
Vim ver se já havia sinal de ti.
Beijos

Branca disse...

Gostei imenso deste texto. Já comentei o tema num post que o Raul fez mais atràs abordando o tema noutra prespectiva, a da possibilidade de os idosos serem infectados, o que normalmente não é pensado precisamente porque socialmente não se assume que tenham uma vida sexual.
No fundo a sociedade baseada em esteriótipos de perfeçao, juventude e beleza, rejeita tudo o que é diferente. Também é comum ignorar-se a sexualidade das pessoas deficientes,embora nos últimos anos já existam algumas abordagens sobre o tema.
Textos destes são importantes e até o debate público desta questão, não só para que se percam esses preconceitos, mas também para que os próprios idosos possam assumir com mais despreocupação e auto-estima a sua sexualidade e para que possam ter direito a dias felizes.
Beijinhos

M.MENDES disse...

Sou sensível a este texto potque já entrei na fase em que o BI diz que sou velho. Ainda me considero em boa forma mas há transformações que podemos ignorar.
A parte emocional é importante mas vem revestida doutras nuances.
Gostei do texto e é bom que se fale no assunto para que não se ache que idoso é coisa acabada.

Um abraço

São disse...

Muito oportuno o texto!
Saudações a vocês.

Fatyly disse...

Gostei muito do texto. De facto a sexualidade - em qualquer idade - pode ser, ou melhor deve ser constituída por mil factores, gestos, erotismo, carícia etc, etc., numa construção diária e não apenas sexo numa de já está, missão cumprida. Infelizmente existe imensos casais de quem quer...e de quem não quer, sem a cumplicidade de ...ambos quererem.

Parabéns!