A ida ao médico

Na minha agenda tenho sempre marcada uma ida ao médico. Que luxo! Claro está, que esta ida ao médico significa sempre a próxima ida, a próxima consulta e muitas se hão-de realizar com toda a certeza. Para mim, novato nestas andanças, a ida ao médico é um misto de todos os sentires. Em primeiro lugar é o relato da sentença para os próximos tempos, é o lembrar-me, agora a sério, de que estou infectado, é o pôr-me ao corrente de como o meu corpo está a reagir à infecção e ao seu combate. Por outro lado, é a confiança de que vou poder encontrar e rever com saudade o meu elo de ligação à vida, o meu médico internista, que deita por terra os clinicos gerais a que estava habituado outrora, frios, simplistas, detentores inequívos do conhecimento e das boas condutas, que se limitavam apenas à clássica prescrição do receituário, pelas queixas apresentadas, e a meu ver, pouco mais. O meu médico internista não é nada disso. Vem buscar-me à entrada do gabinete, acompanha-me até que me sente, colocando-me a sua mão sobre o meu ombro, revelando o grande humanismo com que é dotado, e a primeira pergunta, mencionando o meu nome próprio, é: Como tem passado? E este "como tem passado" não questiona apenas o meu estado de saúde, questiona também o que me vai na alma e o que me vai na alma pode ser, ou melhor, é sempre, a auto ajuda de que necessito para combater a minha infecção e poder enfrentá-la de frente. No entanto, e antes deste encontro que me agrada e conforta, tenho de me submeter aos procedimentos do Serviço Nacional de Saúde, a meu ver, despersonalizados e mecânicos. Chego ao hospital, dirijo-me ao atendimento, onde é efectuado o registo da minha presença e dirijo-me ao gabinete onde me são entregues as análises efectuadas na semana anterior. As mesmas são impressas ali mesmo, à nossa frente, numa impressora cansada de funcionar, amarelada pelo tempo, e são-nos entregues de imediato, em duas ou três folhas A4 desbotadas, como se se tratassem da nossa ementa, do nosso catálogo interior, servido à mesa de um restaurante de terceira categoria, desgastado pelo tempo, arruinado pelo estado de sitio em que se encontra este país. Rapidamente e com o coração aos pulos retorno à sala de espera e procedo à leitura atenta das mesmas, evitando olhares atentos, pois o que lá se encontra escrito, é revelador da infecção vih. A primeira coisa que procuro obter é a carga viral. Se indectável, ufa! Que alivio, meio caminho andado. Provavelmente irei manter a minha actual medicação, e não terei de efectuar testes de resistências, e mudar para medicação que não conheço, mas que decerto me trará outros efeitos secundários que me assustam e atormentam. Depois procuro saber como estão as minhas defesas, se subiram, se me encontro mais protegido, livre de infecções oportunistas. Para terminar, procedo à leitura do hemograma e da quimica clinica, com especial relevo para o colesterol, para a glucose e para as enzimas do figado. Sei que a medicação altera estas coisas. Se tudo me parecer bem, então resta esperar pelo tão esperado e apaziguador encontro com o meu médico, que será essencialmente caracterizado por um passar de dedos pelos meus cabelos, um sorriso fraterno e um até à próxima consulta, com amizade. Saio do hospital e com ligeireza caminho rua abaixo, tendo deixado lá dentro, o peso com que rua acima me arrastei até lá. Agora sim, posso ir à minha vida, ainda que e somente, por mais algum tempo...
Contribuição de: Caloiro

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