Eclipse Terapêutico

São vinte e duas horas, e o eclipse da lua em pleno progresso. Eventualmente não sei nem nunca soube ao certo se realmente é assim chamado, mas sei que a terra é que está a cortar a luz do sol e o que vemos é a sombra da terra a ofuscar a luz do sol reflectida na lua.
O dia foi cansativo com uma reunião do grupo de activistas do HIV. Falei com uma médica amiga sobre a interrupção da terapêutica. Falei com outros membros do grupo eruditos em questões de medicação. Todos me disseram que não é conveniente ser interrompida. Os últimos dias tenho andado ocupado em ler as últimas noticias sobre a conferência internacional do CROI, talvez a nível cientifico a melhor conferência mundial, e também verifiquei os resultados do estudo SMART sobre a interrupção da terapêutica e dos riscos acrescidos de problemas cardiovasculares. Problemas de hipertensão, alto colesterol e testes feitos ao coração fizeram com que tomasse a decisão de interromper a terapêutica com controle dos indicadores do avanço da doença para a retomar quando houvesse um alerta vermelho ou seja a carga viral disparasse e as cd4 descessem.
O Eclipse continua a progredir e a sombra da terra projectada na lua dá um espectáculo de rara beleza. Vou interrompendo a escrita deste texto para ir apreciar a lua variadíssimas vezes.
Um dos grandes problemas para quem quiser interromper a medicação à revelia do clínico que o trata é ter os testes de carga viral e de contagem das cd4, mensalmente feitos num laboratório privado, isto se o clínico não estiver de acordo com a interrupção, e quisermos unilateralmente fazer esta experiência, sem levantar ondas e ao mesmo tempo sabermos como está evoluindo a nossa doença. Não há laboratórios que os façam, pelo menos que eu tenha conhecimento. Claro que quando o médico mandar fazer testes no laboratório do hospital ou no instituto Ricardo Jorge, se a carga viral subir o que certamente vai acontecer ele vai pensar que a medicação não está a surtir efeito. Certamente vai mandar fazer um teste de genotipagem o qual vai ver se o vírus é resistente aos medicamentos que constituem a terapêutica que estou a tomar.
No meu caso a sobrevida de cada um dos medicamentos que tomo não é critica e posso parar todos ao mesmo tempo e isso não vai fazer com que haja possibilidade de se desenvolverem resistências. Claro que o que vai acontecer, é do tipo gato escondido com o rabo de fora, e o médico vai-se aperceber que não há adesão à terapêutica, pois a mesma devia funcionar como tinha funcionado até aqui.
Mais uma espreitadela à varanda e o eclipse depois de encobrir a lua por completo está a deixá-la brilhar de novo. Apetece-me ouvir musica e escolhi um tema dos xutos e pontapés chamado não sou o único.
Também em relação á interrupção da medicação não sou o único.... Uma amiga minha que conheci há uns anos no fórum de um site relacionado com SIDA está com a mesma ideia. Curiosamente o tema pelo qual ela foi ao fórum foi este da interrupção da terapêutica. A coisa foi sendo adiada e esteve adormecida este tempo todo, mas os problemas devido à toma dos medicamentos e aos seus efeitos secundários, fazem com que o assunto não seja esquecido.
Baseado na informação que vou tendo, falei-lhe da inconveniência de uma acção desta natureza, da dificuldade de fazer testes mensalmente e dos problemas que podem vir com a paragem da medicação. No entanto tenho amigos que suspenderam a medicação e que estão bem, alguns deles há vários anos.
Durante este tempo em que o eclipse está a acontecer, trocámos alguns telefonemas sobre o assunto. Não sei o tempo que duraram e nem sei mesmo se o calor que sentia no ouvido era devido à emissão de rádio frequência do telemóvel ou do tempo que o tinha encostado ao ouvido. Eu como menino bem comportado, que tenho ouvido os médicos decidi não interromper a medicação devido ao alerta dos riscos acrescidos que poderia correr. Ela mais rebelde está decidida a interrompê-la e quer ir em frente mesmo sabendo desses riscos. Quer entretanto ter o controlo de cargas virais e contagens de cd4, e está preocupada devido à falta de laboratórios privados que façam estes testes. Está com receio mas está determinada na sua intenção de parar com a medicação.
O meu bom comportamento em relação ao que os médicos aconselham e os meus medos que me levaram no passado a seguir à risca todas as indicações provenientes destes, já me causaram alguns dissabores e muito sofrimento. Por ser bem comportado já estive internado no hospital com uma insuficiência hepática causada por um medicamento, que ainda hoje passados alguns anos ainda tem as suas marcas na saúde do meu fígado.
Mais um telefonema e desta vez com enorme alegria pois tinha descoberto um laboratório que fazia os testes de carga viral e de cd4. Ela estava radiante e passou a última barreira que a impedia de seguir em frente com a sua decisão.
A certa altura disse-me: Ruru fixa bem esta data, em que o eclipse aconteceu, vou parar a medicação hoje mesmo.
Ela tomou esta decisão, depois de comparar os prós e os contras. Vai cuidar da sua alimentação e tomar nutrientes que possam fortalecer o sistema imunitário. À semelhança das forças da natureza, ela desencadeou o início do eclipse na medicação em que a mesma desaparece do seu dia a dia. Também poderá acontecer que um dia, a medicação volte a aparecer de novo o que é o mais provável. No entanto o seu espírito e as suas dúvidas estarão em paz enquanto a mesma durar.
Eu decidi continuar com a medicação e abordar a minha médica para uma mudança por outra terapia que embora não faça milagres poderá atenuar os meus problemas cardíacos. Os meus medos fazem com que não consiga por vezes tomar decisões drásticas, mas isso já faz parte da minha natureza. Muitas vezes fui prejudicado por esta minha atitude, mas continuo sem saber se tivesse tomado outra atitude se não estaria bem melhor e as minhas eternas dúvidas continuam.
Eu respeito a atitude desta amiga e da mesma forma ela compreende a minha.
O eclipse lunar passou e hoje a lua aparecerá de novo sem a sombra da terra espelhada na sua superfície, e o ciclo dos dias das noites e o passar do tempo continuarão o seu percurso.
As nossas vidas continuarão também o seu percurso de uma maneira ou de outra.
Para a minha amiga o ritual da medicação foi substituído por um ritual diferente em que ás mesmas horas tomará um cocktail de produtos nutritivos naturais que certamente só lhe irão fazer bem fisicamente. As dúvidas persistem e daqui a alguns meses ela poderá tirar conclusões da sua decisão. Mesmo que estas sejam óptimas não servirão de exemplo a outros, pois cada pessoa é diferente em relação à infecção pelo HIV.
Eu continuarei com as minhas dúvidas sobre uma acção que não levei a cabo por não ter tido coragem para a fazer.
A música dos xutos, não sou o único... continuará a ter sentido na minha vida e na vida de tantos outros e vou continuar a ouvi-la regularmente.
Desejo a maior sorte do mundo a esta amiga, e que tudo corra bem. Eu continuarei vagueando pelas esquinas das dúvidas e incertezas até que um dia, haja algo que me faça agir sem me preocupar com os riscos que possam vir dessa acção.

5 comentários:

Anónimo disse...

:)))))))))))
Adoro-te Ruru!

Inezoca disse...

Passeei aqui longamente ontem e hoje tive o previlégio de uma visita à capoeira. Como disse lá gostei muito da tua atitude perante uma adversidade e achei muito positivo este blog.
Abraços e boa sorte para a tua amiga e para ti também.

Anónimo disse...

Ru2x e sem duvida alguma um assunto que tb me desperta intresse , a mim nunca foi nessecario mudar medicacao ou seja nunca criei resistencias , mas ja tomo-o faz 12 anos e preocupa-me esses efeitos secundarios que tu falas e todos sabemos e que ao fim ao cabo estou duma idade critica a cerca da minha infeccao . Muitas vezes penso por akilo que leio "um gajo nao morre da doenca morre da cura" esta e uma foda fodida de foder . Ja falei do assunto com meu medico ele nao ta de acordo mas apoia-me como me apoio-ou da gravidez da Clara , e faz-me todos os controis nessecarios . P.S. ru2x obrigado pelos riqueza dos assuntos que se discutem aki

Anónimo disse...

Foi diagnosticado cancro à minha mãe e deram-lhe quatro meses de vida(hoje em dia existe esta estranha mania de os médicos atribuirem prazos de validade aos pacientes, como se de iogurtes se tratassem.)
A minha mãe não durou, sequer, quatro meses mas não morreu do cancro. Morreu da cura, mais propriamente, da radioterapia.
Neste caso foi indiferente. A minha mãe não lutou contra a doença e desistiu de viver, perante a surpresa de o cancro lhe ter batido à porta, a ela que sempre tinha sido tão saudável. Durante uns tempos culpei-a, interiormente, por nunca ter lutado contra a doença e se ter deixado morrer tão depressa. Depois percebi que todos nós deixámos que isso acontecesse. Sobretudo eu, que perdi demasiado tempo com a minha própria revolta.
Quando aceitei o HIV na minha vida foi para o enfrentar e o eliminar, mas não em troca de outros males que contribuem para deteriorar o organismo e, mais tarde ou mais cedo, destruir a vida de outra forma. Fiz uma aposta na vida, não numa esperança de vida mais ou menos prolongada. Por isso não tinha como nao experimentar a interrupção. A carga dispara, retomo, de imediato e não repito a experiência nos próximos anos. Caso contrário, aproveita-se para desintoxicar o organismo e, quiçá, talvez nunca mais seja preciso voltar à carga tóxica :)

R.Almeida disse...

Adorei o teu comentário e a maneira como o escreveste.Tens o blog aberto, mas isso já tu sabes e gostaria de ter textos teus.
A fé move montanhas e isso reconheço pois aconteceu comigo.
Escreverei um texto sobre fé. Uma fé diferente da tradicional em que acreditamos numa divindade, mas que opera milagres.
Força amiga e acredito que vais vencer. Um beijo grande