A Noticia

Tenho contado este acontecimento a imensos amigos, mas não me lembro de alguma vez o ter publicado algures. Neste texto vou narrar como me foi dada a noticia, de que estava infectado com o HIV. A maneira como a mesma foi dada, foi de tal modo cruel, e dita de uma forma nunca por mim esperada, de um médico para o qual palavras como humanidade e compaixão não devem existir no seu vocabulário. Ele nesse momento não foi um médico, mas mais um executor e ao mesmo tempo um carrasco. Corria o ano de 1997 e eu tinha sido internado, no hospital para se descobrir a causa de umas febres que teimavam em não desaparecer. Depois de uma semana de internamento a médica que me seguia, perguntou-me se eu me importava que fosse feito o teste ao HIV ao que eu acedi. Tinha tido uma aventura de verão, mas estava tranquilo, pois não era uma prostituta e era alguém que como eu, queria enfim divertir-se durante as férias. Nessa altura havia poucas campanhas de informação e a SIDA era para mim algo desconhecido embora soubesse que existisse. Continuei internado mais alguns dias e fazendo testes alguns deles muito dolorosos como por exemplo tirarem uma amostra da medula. Com o passar dos dias comecei a ficar preocupado, e como tinha informação que o vírus podia estar vários anos sem se revelar comecei a pensar no passado em que muitas vezes tive relações sexuais com desconhecidas. Passada uma semana mais ou menos a médica que me acompanhava disse-me que eu ia ter alta no dia a seguir. Perguntei-lhe sobre o teste ao HIV mas disse-me que ainda nada sabia. No dia da alta, por qualquer motivo ela não estava e fui chamado ao gabinete do director do bloco. Encontrava-me de pé dentro do gabinete aguardando a chegada do médico. Os meus olhos passeavam-se pelos quadros que decoravam as paredes todos eles com motivos africanos que revelavam uma origem ou então passagem por Moçambique. Estava apreensivo e tentava que a minha mente fugisse do motivo real pelo qual me encontrava naquele gabinete. Não sei quanto tempo lá estive, tal era a minha ansiedade mas esse tempo pareceu-me uma eternidade. Subitamente entrou na sala o médico e perguntou-me o que estava lá a fazer sem sequer me cumprimentar. Disse-lhe ao que vinha e ele com uma voz gélida simplesmente disse-me: -Então a sua médica não lhe disse? Ao que respondi negativamente -O senhor está infectado. É homosexual ? Disse-lhe que não -Teve relações com prostitutas? Eu referi que no passado sim, mas que no presente não -Isto é recente, portanto deveria ter tido relações há pouco tempo. A noticia estava dada e eu sentia-me terrivelmente mal e comecei a ficar pálido, mal me aguentando em pé.. Entretanto o diálogo que era quase um monólogo em que eu respondia com curtas frases, continuou. Perguntou-me se eu era casado e se ia dizer á minha mulher que estava infectado ao que eu respondi afirmativamente, pois não iria esconder algo tão grave, além de estar preocupado com a possibilidade de ter infectado a minha mulher, ao que ele retorquiu: -Sabe é que eu tenho um doente, ou melhor tinha pois ele já morreu, que decidiu não dizer á mulher. Estas palavras, para alguém que acaba de saber que está infectado com o vírus da SIDA, e que não sabe absolutamente nada sobre a doença, foram realmente a machadada final. Ele tinha-me acabado de dizer indirectamente que a doença me iria matar também. Acho que nesta altura ele apercebeu-se de como eu me sentia e disse-me para me ir deitar na minha cama e que depois a enfermeira ia-me levar os papeis da alta, mas que teria de voltar ao hospital pois ainda faltavam os testes de carga viral. Voltei para a cama e não me lembro de ver ou falar com alguém. Estava tudo acabado e eu iria morrer em breve. Não sei o que pensava, nem consigo descrever como me sentia nessa altura. Lembro-me de estar preocupadissimo com a possibilidade de ter infectado a minha mulher e preocupava-me imenso ter ainda dois filhos menores, os quais não poderia ajudar na sua formação e preparação para a vida pois iria morrer em breve. Sabia que naquele dia iria para casa, e iria dar a noticia á esposa e aos filhos. Queria viver, queria que a minha mulher não estivesse infectada e queria ver os meus filhos criados. Este texto relata apenas a “Noticia da infecção”, de seguida irei escrever outros textos sobre os dias que se seguiram e que também foram angustiantes. Passados dez anos este episódio continua bem vivo na minha memória especialmente as palavras “ Tenho um doente ou melhor tive pois já morreu ...” .

8 comentários:

Anónimo disse...

Caramba! Isso é assim? Desses que são considerados profissionais?

Chocante....

rosario

Biby disse...

Infelizmente em todas as areas há bons e maus profissionais!
Erro grave: Não houve aconselhamento pre teste nem pos teste!Em 1997 o médico tinha obrigação de transmitir a noticia deixando aberta a porta da esperança, até porque já havia HAART. O perguntar-lhe se era homossexual ou tinha tido relações com prostituas é comum a muitos relatos que ouvi! Infelizmente isso por vezes ainda acontece!Uma amiga minha no ano passado teve um comportmanto de risco e ficou tão preocupada que acabou por ir a um CAD fazer o teste! Depois do aconselhamento pre teste "o profissional" resolveu massacra-la com frases "Andou a portar-se mal" "foi uma má menina", a minha amiga saiu de lá super assustada sentiu-se gozada e maltratada. Mas quando foi buscar o resultado foi ainda pior. O mesmo profissonal torturou-a durante um bocado até lhe dizer que não tinha nada.
Situações destas quando acontecem devem ser denunciadas.
Felizmente conheço pessoas que foram a outros CADs e foram muito bem atendidas. É uma questão de sorte.

Anónimo disse...

Seria interessante colocar os textos sobre essa altura após ter recebido a noticia

Cumprimentos

Murilo Battisti disse...

Seu blog é fantástico...
parabéns pela coragem e pela luta!

abraços!

Murilo

Laurentina disse...

Esse tipo de médico terá apenas a questão académica ...no entanto só isso não basta!!!
Que grande cavalgadura!!!
Amei conhecer o seu blog, vim aqui ter atraves do blog amigo do Adesenhar.
Bom fim de semana

Beijão grande

SILÊNCIO CULPADO disse...

Raul

É um texto muito emotivo que nos deixa sem palavras.
Só tenho palavras para o médico que foi uma besta.

Um abraço

Anónimo disse...

e deveras chocante mas esta e a realidade mesmo os profissionais de quem se deve esperar o maximo apoio sao os que mais se divertem com a situacao

Anónimo disse...

e deveras chocante mas esta e a realidade mesmo os profissionais de quem se deve esperar o maximo apoio sao os que mais se divertem com a situacao