Retrospectiva


Amanhã vou saber o resultado das análises. A confirmar-se o resultado, o mundo cair-me-á em cima. Hoje é o último dia da vida que sempre tive. Provavelmente será o último dia de liberdade, sem o VIH, declarado oficialmente. Vou desfrutar deste último dia e tentar preenchê-lo com particulas de todos os dias que já vivi. Não posso perder um segundo. Hoje, preciso de todo o tempo que consumi desde que nasci.

Levanto-me cedo, dirijo-me ao hospital. Ouço os meus passos apressados. Estou nervoso. Preciso recomeçar a viver. A dúvida, a angústia e o desespero dos últimos tempos, fizeram-me cair numa depressão profunda. Já não é possível continuar a viver assim. Preciso ser esclarecido, confrontado, ter o choque da notícia, sofrer tudo de uma vez só e respirar fundo.

Ufa, acabo de chegar, aguardo pela consulta, pacientemente. De repente, a médica vem ter comigo e pede-me para que a acompanhe. Entro no gabinete, sento-me. Ela olha-me preocupada, assustada até. Confirma um resultado positivo, sem identificar a patologia e tenta perceber a minha reacção imediata. Sinto um nó na garganta, algumas lágrimas teimosas, respiro fundo, aliviado. Em poucos segundos dissipam-se as dúvidas, os tempos infindáveis de angústia, a batalha do desespero.

É tempo de arregaçar as mangas e fazer o que tem de ser feito. Amanhã terei a primeira consulta da especialidade, repetirei análises que confirmem o que hoje me foi transmitido, e outras especificas para saber o ponto em que se encontra o efeito devastador do virus. Pode ser que tudo esteja ainda sob controlo do meu próprio organismo. Pode ser também que nem necessite de medicação para já.

Regresso a casa com a certeza de que voltarei amanhã, assim como voltarei muitos e muitos dias durante toda a vida que me restar daqui para a frente. O hospital, a partir de hoje, fará parte da rotina da minha vida, será um local onde me habituarei a ir vezes sem conta, para que possa tratar de mim.

Voltei no dia seguinte e sinto-me reconfortado. O médico que me seguirá é de facto espectacular, além de um super entendido na àrea do VIH/SIDA. Tive sorte. Infelizmente o virus fez estragos consideráveis. Tenho de iniciar imediatamente a medicação, por forma a preservar o que resta do meu sistema imunitário. Tenho apenas cento e tal células de defesa, quando normalmente, uma pessoa não infectada, poderá ter até mil e tal destas preciosas células. Iniciar a medicação, sem medo dos efeitos secundários é o que irei fazer.

O tempo foi passando e já lá vai um ano e tal. Sinto-me saudável e cheio de vitalidade. A medicação reduziu o virus a quase nada, isto é, ao máximo que é possível reduzi-lo, apesar de não o conseguir exterminar. As células de defesa subiram desde então. Tenho já trezentas e tal e continuarão a subir ao ritmo do meu organismo. Tive também tempo para arrumar os fantasmas da infecção, pelo menos os mais aterradores. Hoje vivo com maior paz interior e de certa forma mais feliz. Vivo a vida enfocando-me somente no que vale a pena. Passei a tomar três comprimidos por dia, a fazer análises de seis em seis meses, seguidas de uma consulta com o meu médico infecciologista. Interiormente cresci imenso. Quando algo nos transporta ao limite da vida, regressamos maiores e repletos de vontade de viver intensamente.

Paulo

19 comentários:

Fatyly disse...

Um testemunho na primeira pessoa, nada fácil mas ao ir-se ao fundo do poço, ressurge-se de novo e:

"Hoje vivo com maior paz interior e de certa forma mais feliz. Vivo a vida enfocando-me somente no que vale a pena."

Parabéns rapaz!

Um abraço sincero, mas sincero mesmo

Arnaldo Reis Trindade disse...

Amigo Paulo,

parabens por estar vencendo mais uma batalha e por viver de cabeça esguida e aproveitando ao máximo o bom da vida, tenho em tí um exemplo de pessoa e sabes disso desde as primeiras vezes que nos falamos por cá, espero que as tuas células de defesa cheguem a mil como és o teu coração e a tua força de vontade.
Desejo-te um ótimo dia de cada vez, não só a tí mas a todas as pessoas.

Abração.

Coragem disse...

Paulo, inicio este comentário com um beijo...Sempre sincero.

No fundo, acredito até que tenhas muitos motivos para te sentires um homem feliz...

Imagino o susto, imagino a depressão dos primeiros tempos, imagino até a angustia ao pensares nos dias contados.

Após os primeiros tempos, acredito que tenhas todos os motivos para sorrires.

Obrigada pela partilha. Uma vez mais dares de ti, é preciso coragem.

Gosto muito de te ler, gosto da simplicidade e até naturalidade que colocas nas palavras...
Gosto de ti.

. intemporal . disse...

Fatyly
A descida foi rápida e vertiginosa. A subida foi e é por etapas, por vezes só, por vezes amparado. O objectivo é sempre superar e olhar em frente.
Um abraço repleto de sinceridade.

. intemporal . disse...

Arnaldo
Prezo muito a tua amizade e a tua preciosa colaboração. Com a tua ajuda e com força de vontade as batalhas são vencidas e a guerra ainda não terminou. Quem sabe, um dia se descubra a cura para o VIH e aí a mesma será ganha.
Um abraço muito amigo.

. intemporal . disse...

Coragem
Obrigado pela visita :) Tinha saudades de te encontrar por aqui. De facto foram os dias mais dificeis de toda a minha vida, dias em que superar se tornava quase uma tarefa impossível. Descobri o segredo: Viver um dia de cada vez! E tem resultado.
Coragem, palavras para quê... fazes já parte das minhas defesas contra esta patologia. Também gosto muito, mas mesmo muito de ti.
Beijo sincero e ... estarei sempre presente no teu cantinho, onde me sinto muito bem e com uma leveza fora de série.

sideny disse...

paulo
nos temos mesmo que viver um dia de cada vez.
damos mais valor a esses dias.
ja chega quando recebemos os resultados das analises, em que tudo vem abaixo.
espero que tudo te corra tao bem como tem corrido ate agora.
vale muito ter um bom medico, o meu tambem e otimo nessa area, estou nos capuchos nas consultas.
um abraco

. intemporal . disse...

Sideny
De facto temos de viver um dia de cada vez... Até agora não me posso queixar, tudo tem corrido bem. Desejo também que tudo continue a correr bem consigo.
Também sou seguido nos Capuchos e o meu médico é o Dr. Eugénio Teófilo.
Um abraço Sideny e muita saúde.

sideny disse...

paulo
o meu e dr.victor brotes mas conheco o seu medico foi-me apresentado pelo meu, quando fui operada a um pulmao.
ate agora nao estou a tomar medicacao ,vamos ver la para novembro como estao as coisas.
estarao bem concerteza.
abraco tudo de bom

Eternamente disse...

Paulo
Que lindo texto e que sensibilidade maravilhosa ele revela. Não sei se já tinhas estes dons de escritor antes de seres contagiado mas o que é facto é que é um gosto ler-te.
Sei que os portadores do HIV irão ter novas oportunidades com a aplicação de vacinas que se prevêem num futuro próximo.
Anseio por isso para que tu e o Raul e todos os que não conheço tenham uma nova vida repleta da sabedoria que este abanão lhes deu e que lhes permitirá disfrutarem intensamente dos momentos futuros.

Beijinhos, Paulo

Mary disse...

Paulo
Ainda com mais motivos para te abraçar só te digo em relação a este belo e comovente texto: acreditar, acreditar sempre.

Muitos e muitos beijinhos

Maria Oliveira disse...

Há que aproveitar a vida!
Seja qual for o teste que possamos fazer, seja quais forem as etapas da vida que temos de batalhar, há que ir corajosamente em frente.
A serenidade é possível! A felicidade também!

Abraço

Arnaldo Reis Trindade disse...

Paulo,

grande amigo e bom exemplo pra se seguir, as batalhas serão vencidas uma de cada vez e daqui alguns anos, amigos distantes estarão comemorando a vitória de várias guerras, não só a contra o HIV, mas também contra as estigmatizações causadas por ele, preconceitos serão ban idos do mundo, luto por isso e espero que aconteça.

Abraço terno

. intemporal . disse...

Louise
Desde muito jovem que a minha escrita sempre foi apreciada. O mesmo já não se poderá dizer da Matemática. Mas, não podemos ter jeito para tudo. Desejo profundamente que o futuro seja de facto próximo, no que se refere à descoberta de uma vacina terapêutica eficaz. De facto, a vida a partir daí seria repleta de felicidade. Ninguém merece uma condenação perpétua.
Beijinhos

. intemporal . disse...

Mary
Acreditar sempre, sim! Ter esperança, muita esperança e quem sabe um dia a nossa esperança se torne numa realidade. Até lá, o teu abraço total, reduz consideravelmente o tempo de espera. :)
Beijinhos, muitos, imensos... :))

. intemporal . disse...

Paula
Olhar em frente e viver enfrentando adversidades é a melhor solução. O que não tem remédio, remediado está. Neste caso, remédio tem e quem sabe uma dia tenha mesmo muito mais do que isso.
Abraço

. intemporal . disse...

Paula
Olhar em frente e viver enfrentando adversidades é a melhor solução. O que não tem remédio, remediado está. Neste caso, remédio tem e quem sabe uma dia tenha mesmo muito mais do que isso.
Abraço

. intemporal . disse...

Arnaldo
A força dos teus desejos dão-me força para prosseguir a caminhada. Buscas um mundo perfeito e o teu apelo é no sentido desse alcance. Fico feliz pelo teu empenho, fico maravilhado com a tua dedicação. É muito bom um moço ainda tão novo, ter já uma visão tão ampla e correcta de como a vida deveria ser, a cada dia que passa.
Arnaldo, obrigado pela tua amizade.
Abraço terno para ti também.

R.Almeida disse...

Paulo
Obrigado pelo teu comentário no post "O Rosto da SIDA" no Sidadania II.
Realmente a SIDA não tem rosto e o HIV está escondido por baixo da pele e não se revela excepto nos testes. O que me admira é que haja quem a queira retratar sem a viver e sem a compreender.
O teu texto está excelente, e embora te tivesse dito que não o ia comentar não posso deixar de o fazer.Quando o que escrevemos é vivido e sentido por nós, saem bons textos que são o espelho daquilo que nos vai na alma. Um abraço de infectado para infectado.