Aos novos infectados

O mundo desabou sobre a minha cabeça, talvez seja a frase mais ouvida por quem recebe o diagnóstico de que é seropositivo ao VIH. Aconteceu comigo e com tantos outros companheiros que tenho conhecido ao longo destes anos de infecção.
Desde há muitos anos, na altura em que a Sida para mim era uma miragem e algo que só acontecia aos outros, uma coisa que me fascinava era a implosão de edifícios antigos que em segundos eram transformados num monte de entulho sem qualquer utilidade que tinha que ser removido para que o espaço ocupado pelo velho edifício pudesse ser utilizado de novo.
Permitam-me a comparação com a notícia de que estamos infectados com o VIH, em que o edifício antigo era a nossa vida antes da infecção e que de um momento para o outro foi transformada num amontoado de sucata. Depois do primeiro embate e de limparmos todo o lixo amontoado fica um terreno vazio que é a nossa vida como seropositivos nos primeiros tempos da infecção.
Agora temos duas atitudes a tomar uma delas é ficar a pensar que o edifício antigo ou seja a nossa vida antes do VIH era excepcional, mas o certo é que o mesmo deixou de existir. A outra atitude é pensarmos em construir um novo edifício mais belo e funcional do que o anterior, e para isso temos de fazer um novo projecto vendo quais os defeitos que o anterior tinha para os podermos corrigir.
A infecção pelo VIH não é o fim de tudo. Temos de a encarar como uma oportunidade única para construir uma vida diferente melhor do que a anterior e posta ao serviço dos outros. Se pensarmos desta maneira de forma genuína e se perdermos os medos que estão escondidos dentro de nós, poderemos ganhar nova vontade de viver e construir o novo edifício em tudo mais belo do que o anterior.
Claro que é difícil falar para um “newbie”, acerca disto numa altura em que as suas mentes estão ocupadas com pensamentos como a desgraça, a morte, os efeitos secundários dos medicamentos e tantas outras coisas, mas estou à vontade em escrever sobre o assunto pois já passei pelo mesmo assim como tantos outros companheiros que estão infectados alguns dos quais há mais de 20 anos.
Há um numero de passos chave que devemos dar logo no inicio para nos libertarmos da carga negativa que temos sobre os nossos ombros e que é o VIH. Comecemos com a partilha do nosso sentir, dando a conhecer a nossa situação a um familiar próximo ou a um amigo com quem possamos conversar abertamente do nosso problema. É um passo perigoso pois na vida antes da infecção por vezes não tivemos a oportunidade de avaliar a intensidade dessa amizade ou laço familiar e por vezes podemos ter uma surpresa desagradável, pois as pessoas não estão preparadas para a notícia e até pode acontecer que aquilo que queríamos ficasse fechado nesse círculo pode passar para fora e o nosso problema agrava-se, portanto devemos ter muito cuidado.
Outro passo é tentarmos contactar pessoas seropositivas e o melhor sistema é recorrermos a associações que tenham em funcionamento grupos de auto-ajuda. Aí poderemos falar abertamente pois os nossos interlocutores têm exactamente a mesma infecção do que nós, simplesmente não lhe dão tanta importância como nós damos por já estarem estabilizados em relação à mesma.
O segundo passo á aprendermos sobre a nossa doença e sobre os medicamentos que tomamos e das opções que temos para manter o vírus suprimido de maneira a que possamos ter uma vida com qualidade. Também não é um passo fácil pois a quantidade de informação disponível é demasiada e nós temos a tendência de guardar as partes negativas e menosprezar a parte positiva. Aqui é natural darmos relevo aos efeitos secundários da medicação e dos efeitos a longo prazo e as alterações que os medicamentos vão operar no nosso corpo tais como a lipodistrofia, aumento do colesterol e outros. Não nos lembramos das vantagens dos medicamentos em relação à reconstrução do nosso sistema imunitário, e que eles permitem-nos ter uma vida com qualidade sem que doenças oportunistas nos incomodem e possam fazer os seus estragos e eventualmente levar à morte.
Na caminhada para a reconstrução da nossa nova vida, encontraremos inúmeras oportunidades de actuação para podermos ser úteis aos outros e a nós mesmos. Podemos dedicar-nos ao estudo dos medicamentos e da doença para sabermos e compreendermos o que tomamos e porque é que os médicos tomaram esta ou aquela opção em relação à doença. Nem sempre, os nossos companheiros que estão numa fase mais avançada da doença têm os cuidados médicos e terapias de resgate que necessitam para continuarem a viver, aqui encontramos outra oportunidade de luta tornando-nos activistas e denunciando o desrespeito por direitos que todos temos.
´Todos não somos demais para lutarmos pelos nossos direitos, e a Sida é marca que veio para ficar em nossas vidas, e cada um é livre de deixar que ela nos vença ou então lutar contra ela
Talvez este texto, não seja ideal para ser assimilado por um récem infectado, que tem a sua mente ocupada com tantos fantasmas e medos, não obstante ter sido escrito por alguém que já se sentiu assim ou talvez pior, pois para mim na altura em que fiquei infectado o doente com sida era do tipo andrajoso com roupas sujas e feridas nos braços e corpo e os tratamentos eram grandes botijas com um produto chamado AZT e pessoal médico com roupas de protecção brancas e máscaras para evitarem o contágio. A culpa não era minha pois essas imagens foram-me trazidas pela televisão e comunicação social desde que a Sida apareceu.
Embora ainda não fosse feito o suficiente (longe disso) hoje há muito mais informação sobre a doença e alguma dela passou para o público em geral. Há muito a fazer e nós podemos ser parte activa em todas essas acções, pois afinal a doença é nossa e temos direitos adquiridos que ninguém nos pode retirar.
Afinal o que é que um novo infectado vai decidir fazer? Quer lamentar-se da sua doença e fazer com que todos olhem para ele com compaixão e pena ou por outro lado quer ser um elemento responsável e activo na luta contra a pandemia.
Cabe a cada um decidir o que deve fazer. Pessoalmente escolhi a segunda opção, sem esquecer contudo o impacto que a notícia da infecção teve na minha vida.
Aos novos companheiros infectados tenho a dizer-vos que gostaria que não estivessem deste lado, mas já que cá estão e não podem regressar à situação anterior de não infectados (por enquanto), sejam bem-vindos ao clube.
Um abraço seropositivo e muita força companheiros.

3 comentários:

Nela disse...

Comento aqui sem o conhecimento da realidade da Sida. também o mundo me caíu em cima quando soube que tinha cancro, mas essa doença não tem o estigma social que a sda tem. É mais uma luta a somar a todas as outras.

Não podia estar mais de acordo com o Ru2x: as grandes chapadas da vida são sempre as maiores oportunidades que temos de construir algo novo. Dirão, ah pois,falar é fácil. Quem tem que lidar com todos os pormenores da doença junto com o isolamento, o medo de que descobram, o dedo apontado, as relações amorosas às vezes desfeitas, etc. etc., é que sabe como sofre.

Pois, mas a doença já não a podem tirar, a forma como os outros reagem também é quase impossível de mudar de repente, mas a vossa vida, a forma como vivem, pode mudar. Também o cancro, como a sida, tem a força e a devastação suficientes para nos pôr a mexer e nos obrigar a reconstruir com alicerces novos.

Parece-me fundamental arranjar um apoio. Em português simples: a gente sózinho não se aguenta...

Para este "jovem" (jovem! querias...) recém-infectado um grande abraço de força! Como diz o RU2x, isto talvez não faça sentido nenhum agora, mas é verdade: Há vida depois da Sida, nem sempre, mas muitas vezes.

R.Almeida disse...

Olá Nela,obrigado pelo teu comentário e pela força interior que tens.Ontem passei pelo teu blog, o só mais um bocadinho e está lindo.Há umas semanas atrás estive no IPO dentro da sala de tratamentos da Quimio e pensei muito em ti.Olhava para cada um dos que estavam em tratamento e pensei muito em ti e noutros amigos que por lá passaram.Fiz alguns amigos e ouvi os dramas de cada um daqueles com quem conversei.
A Sida e outras doenças crónicas têm uma relação entre elas e isso não é de hoje e remonta aos primórdios da civilização,sendo os relatos mais antigos em relação aos leprosos.
O medo em relação a qualquer doença é o factor decisivo para a estigmatização e para a discriminação dos seus portadores.A Sida começou mal por a associarem a grupos como os homosexuais e toxico dependentes daí o estigma que até hoje se mantém.
Entre Sida, Cancro, Hepatite C e outras qual a pior? Sinceramente não sei portanto que venha o diabo e escolha.
Um beijo
Raul

Anónimo disse...

Obrigado Nela pelo Seu comentário. Aos poucos, vou-me sentindo mais amparado. Não tenho palavras para lhe agradecer a sua participação.
"Jovem"