Cancro da Mama (Relato Verídico)

Nas voltas que a vida dá fui parar a Joanesburgo como refugiado de uma guerra sem sentido que me obrigou a fugir da terra na qual passei a minha meninice.
Por lá conheci um casal de emigrantes portugueses que por lá se fixaram muitos anos antes, eram gente simples de uma aldeia de Portugal que como tantos outros foram à procura de uma vida melhor. Acho que nunca encontrei gente tão encantadora e de uma riqueza interior tão grande. A vida tinha-lhes corrido bem e tinham todos os bens materiais de que necessitavam. A amizade desenvolveu-se rapidamente e eles eram para mim e para minha mulher entre outros amigos que por lá arranjámos a família que não tínhamos por aquelas paragens.
Um dia a Zé (nome fictício) num exame de rotina soube que tinha um cancro na mama esquerda. Foi operada pouco depois e o peito foi-lhe removido, tendo-lhe sido colocada uma prótese creio que de borracha (o silicone ainda não fazia parte das próteses, presumo). Os primeiros tempos foram um pouco difíceis para ela, mas estávamos num país medicamente avançado e com encontros com outras mulheres que tinham o mesmo problema, em terapia de grupo, aliado a uma força interior bastante grande, depressa recuperou. Os anos foram-se passando e o episódio praticamente esquecido. Era comum devido à confiança que tínhamos eu apalpar-lhe a prótese e dizer-lhe na brincadeira que tinha uma mama rijinha . O marido olhava e na brincadeira dizia, deixa lá ver qual é a mama que estás a apalpar e era uma risota pegada.
Passaram-se dez anos ou mais e eles decidiram regressar a Portugal e à sua aldeia. Um ou dois anos depois eu também decidi vir para Portugal e vim viver para Lisboa.
A Zé continuava de boa saúde e embora a aldeia onde moravam fosse a mais de cem quilómetros de Lisboa muitos fins de semana eu ia até lá para estar com eles.
O azar entretanto parecia que não queria deixar esta família. Novo cancro, desta vez nos pulmões. Não foi operada mas iniciou no IPO de Lisboa os tratamentos de quimio e radioterapia. Deslocava-se semanalmente a Lisboa para o tratamento, fazia o percurso na auto estrada para ir ao tratamento conduzindo ela própria. Depois do tratamento vinha para a minha casa, deixando muitas vezes o carro no meio da rua e pedindo-me para o ir estacionar. Deitava-se, descansava umas horas, pegava de novo no carro e voltava para a sua aldeia novamente.
Os anos iam-se passando e ela continuava com os tratamentos, sempre fazendo a viagem sem querer que ninguém viesse com ela.
Os filhos não se adaptaram a Portugal e um foi para Londres, uma filha que tinha tido problemas no casamento regressou á África do Sul, deixando um neto que a Zé criava com todo o empenho. O filho mais novo, esse continuava por cá pois ainda estava no secundário. Parecia que tudo estava a correr bem e os tratamentos já eram espaçados e não nos víamos, tão frequentemente como desejaríamos. Ela continuava a criar o neto e com uma força de viver tremenda, ninguém dizia que aquela mulher tinha passado por dois cancros.
Durante perto de um ano nada soube deles, até que um dia o marido que entretanto tinha ido de novo para Joanesburgo levar o pequenito pois a filha tinha organizado a sua vida a queria a criança perto dela, me apareceu em casa. Vinha abatido e durante a conversa perguntei-lhe o que se passava com ele. Com lágrimas nos olhos disse-me que a Zé estava internada e que não havia esperança. Fui visitá-la á tarde, não sabia as horas de visita mas sabia onde ela estava enfermaria R3. Fui interceptado por um funcionário que me perguntou onde ia que não era hora de visita. Ao dizer onde ela estava, mudou a sua atitude quase agressiva e simpaticamente levou-me até ela. Mais tarde vim a saber que o R significava os quartos de repouso para onde os doentes em fase terminal iam.
Falei com ela, lamentando-se que estava no fim e que ia morrer. Estávamos perto da época natalícia e eu comecei logo a fazer planos para a animar que íamos passar o natal juntos e que ela ia recuperar. Ela sorria e com uma tranquilidade espantosa dizia-me que agora iria partir.
Poucos dias se passaram e cada vez a comunicação era mais difícil, pois ela já quase não conseguia falar. Na última visita que lhe fiz, encontrei o marido no corredor com lágrimas nos olhos, disse-me que ela já não falava nem comunicava. Estava desesperado. No dia anterior com muita dificuldade ela tinha-lhe dito que queria voltar á casa dela na aldeia para morrer.
Fui até junto dela peguei-lhe na mão e dei-lhe um beijo. Comecei a falar com ela num monólogo sem resposta e a certa altura perguntei-lhe se ela queria ir para casa? Os olhos abriram-se, a sua mão apertou a minha e a cabeça fez um sinal afirmativo. Vou levar-te para casa – disse-lhe, e o seu rosto parecia estar sorrindo.
Consegui uma ambulância para a levar, já tinha a autorização médica. Avisaram-me que se ela morresse na ambulância eles sairiam da auto-estrada e deixavam-na no hospital mais próximo.
Não segui com ela, achei que devia passar os últimos momentos com o marido e com o filho mais novo. Ela sobreviveu à viagem até casa. No leito ainda conseguiu por gestos dizer qual o vestido que queria levar e que o filho vestisse um fato branco que tinha usado no casamento da irmã. Havia algo mais que queria, mostravam-lhe tudo mas ela acenava que não, hoje penso que seria uma fotografia do neto que tinha sido a sua razão de viver nos dois últimos anos e que tinha ido para junto da filha em Joanesburgo, mas ninguém conseguiu descobrir. Fez sinal para que deixassem de lhe mostrar coisas, que não tinha importância. Pouco depois deu um peido, e respirou pela última vez. A Zé tinha partido, no momento em que o relógio da igreja da aldeia com as suas badaladas anunciava que eram 4 horas da manhã.
Venceu o cancro da mama, e o cancro do pulmão só a levou porque lhe faltaram as munições para continuar a lutar e a querer viver. O seu apego á vida era o netinho , assim como para o cancro da mama que venceu foram os seus filhos que na altura ainda eram pequenos.
Perdoa-me Zé por partilhar momentos das nossas vidas com outras pessoas que não conheces, mas achei que o devia fazer pois tu foste e continuas a ser uma vencedora contra o cancro, e mesmo tendo partindo podes com o teu exemplo de vida ajudar outras pessoas a serem vencedoras. Onde quer que estejas amiga, sei que és um anjo que olha por mim, e que me dá forças para continuar a viver.
Nota: Dedico este texto a todas as mulheres que têm cancro da mama, entre as quais uma amiga que ainda não conheço pessoalmente chamada Manuela.

4 comentários:

Nela disse...

Pelo que contas, a tua amiga Zé viveu e morreu com dignidade. Isso basta. Ela venceu!

Como diz um excerto de um texto de que eu gosto muito: "Não me interessa onde ou o quê ou com quem estudaste.
Quero saber o que te sustém interiormente quando tudo o mais desaba à tua volta.".

Obrigada por partilhares o texto e por o dedicares a quem tem cancro de mama.

R.Almeida disse...

Ela continuaria a viver, eu pelo menos acredito nisso.A força que nos apega à vida faz parte da terapia e está provado cientificamente que isso é uma realidade.
Acreditares em ti e dedicares-te como causa de vida a ajudar os outros,vai certamente fazer a diferença e ajudar-te a vencer o Cancro.Actualmente os tratamentos evoluiram muito e os métodos para detectarem as vulgarmente chamadas "raizes" também.Precisas acreditar em ti e na tua força interior e vais ser uma vencedora.
Um dia, quando te conhecer falar-te-ei de casos de sucesso um deles numa cunhada minha,para a qual não havia esperança há 3 anos e meio e que actualmente está bem,depois de uma intervenção cirurgica de risco.

BiChOs Do MaTo disse...

Obrigado por teres partilhado esta pequena história connosco.
Um beijinhos muito muito grande e gordinho no teu coração
Lara

R.Almeida disse...

Olá bichinha do mato.O coração agradece, mas olha que gordurinha é demais para ele pois os colesterois não andam muito bons :)
A história não é pequena e dava um livro, resumindo ao máximo lá consegui colocá-la num texto de blog, mesmo assim um pouquinho grande para o que é habitual.
Beijão